Dualidade. Opostos. Doce e salgado, frio e calor. O mundo
está repleto de metades fadadas a permanecerem separadas. A própria espécie
humana parece ser a máxima expressão da luta constante entre partes
antagônicas. Carne e espírito, razão e emoção, dor e prazeres, amor e ódio.
Somos instruídos desde cedo a lidar com os conceitos do bem
e do mal. Escola e família proporcionam as vivências necessárias para a
solidificação e aplicação de ambos. Nesse contexto, nos é ensinado a respeitar
e tratar nossos semelhantes como a nós mesmos. Mas, que semelhantes são esses
que podem nos ser tão distintos, ao
mesmo tempo?
É fácil observar o surgimento de pequenos grupos já no
ambiente escolar, todos regidos por rituais de aparências e afinidades,
cuidadosamente expostas ou ocultadas. É o momento em que se inicia o hábito de
classificar as pessoas para compreendê-las. Não se pensa, a esse ponto, que,
quando pessoas se unem, geralmente o fazem contra algo ou alguém. É familiar a
todos o diálogo que se segue à uma apresentação informal de estranhos.
Indagam-se sobre times de futebol, signos, religiões, partidos políticos,
comenta-se sobre gostos musicais… Tudo na esperança de que as respostas
resultem na melhor representação possível daquele de quem nada se sabe. De
acordo com o que revela, cada estranho é considerado “dos seus” pelo outro, ou
não. Isso acontece tão frequentemente que há quem considere mais fácil criar
personagens para si próprio, em conformidade com a amizade, o amor ou o emprego
almejados. Ao Príncipe de Maquiavel, “não é necessário possuir todas as
qualidades, mas é necessário parecer tê-las”.
Se fôssemos analisados por um alienígena, seríamos todos
vistos como um enorme e único grupo, enquanto distintos de qualquer outro ser
ou objeto. Mas, sob a pele, abrigamos personalidades e vontades infinitas, o
que nos torna sujeitos, donos de conjuntos de experiências individuais, todas
centradas na perspectiva do “eu” – logo, subjetivas.
Nem por dentro nem por fora somos seres estáticos. Corpo,
rosto e personalidade, para melhor ou pior, mudam um pouco a cada dia. Somos, como disse Sartre, criaturas
condenadas a aprender a ser livres. E é o indivíduo a fonte de sua própria
liberdade, seja ela ilusória ou não.
Para Descartes, a descoberta desse “eu”, único e livre,
coincide com a descoberta da razão, uma vez que a percepção individual
mostra-se como realidade pensante, a verdade indiscutível, a consciência.
Podemos dizer, assim, que o “Penso, logo existo” satisfez uma parte do “Conhece-te a ti mesmo”, ordenado ao futuro
pela Grécia Clássica.
Como poderíamos,
então, alcançar a compreensão do “eu” do outro, uma vez que jamais teremos
acesso à consciência de qualquer um, a não ser nossa própria? Para se ter uma
noção do quão vasta é essa questão, basta a lembrança de que a palavra “pessoa”
vem do latim, e significa “máscara”.
Seria impossível, ainda que quiséssemos, mostrarmo-nos
inteiramente ao mundo e, assim, sermos compreendidos pelos demais? Seria
inevitável a construção de “máscaras” ao longo da vida, na melhor das
hipóteses, apenas fragmentos de faces muito mais complexas?
Talvez daí surja as metades. Porque somos invisíveis, uns
aos outros. Porque cada um é um universo único, em formação, uma configuração
que jamais se repetirá novamente, cujo ponto de vista jamais será compartilhado
com mais ninguém. Porque, enquanto vamos descobrindo quem somos, damo-nos conta
da distância entre o “eu”, que tanto conhecemos e o resto do mundo tão
insondável e, não raro, o sentimento de injustiça aflora somente quando vemos a
nós mesmos prejudicados em alguma situação.
Mas não se pode dizer se tais diversidades e divergências é
que impulsionam o homem à frente, ou se andamos tão lentamente justamente
porque cada um insiste em escolher sua própria direção e, às vezes, alguns
ainda param pelo caminho para convencer os demais de que a sua é a estrada
correta.
Por mais que se reconheça que uma profunda compreensão das
diferenças e o tão desejado entendimento mútuo da humanidade são pouco mais que
fantasias longe de concretizarem-se um dia, permanece a certeza de que
coexistir é tão complicado quanto necessário. E mais: a felicidade real habita
um lugar muito além de uma simples convivência pacífica. Só se chega nesse
lugar com a entrega, com a sincera tentativa de deixar cair as máscaras e a
busca desarmada pelo vislumbre da verdadeira amizade, da verdadeira justiça e
do verdadeiro amor. Unir metades é, antes de tudo, um ato de confiança nos
mistérios que se escondem além de nós mesmos.
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